11 99167-0001 11 3884-7100 contato@sogesp.org.br
Logo SOGESP

#BlogRevistaMulher - Abordagem das pacientes de diferentes culturas

Abordagem das pacientes de diferentes culturas
Autora: Dra. Maria de Lourdes Beldi de Alcântara
Pesquisadora e responsável pela disciplina Antropologia Médica na Faculdade de Medicina da USP
Edição 15

Algumas vezes, na prática de atendimento ginecológico, e da medicina como um todo, é possível encontrar mulheres de diferentes culturas e/ou religiões que apresentam solicitações específicas e particularidades sobre a forma que desejam ser tratadas.

Por ser algo que se difere do comumente observado no dia a dia, alguns médicos podem ficar em dúvida sobre como proceder nestes casos, de forma a manter as recomendações científicas, mas sem deixar de respeitar a paciente.

Neste sentido, a linha de pesquisa da Antropologia Médica buscar entender a etnografia do próprio campo da medicina e os diferentes saberes de saúde e doença. Isso significa que cada cultura tem sua própria classificação e interpretação do que é estar saudável ou doente, e cabe aos profissionais da saúde se atualizarem para prestarem um atendimento de qualidade.

Para Maria de Lourdes Beldi de Alcântara, pesquisadora e responsável pela disciplina Antropologia Médica na Faculdade de Medicina da USP, esse raciocínio abre espaço para uma crítica aos protocolos biomédicos. “O erro que acabamos cometendo é naturalizar a cultura biomédica. Ela é hegemônica, mas não universal. E muitas vezes esquecemos isso”, declara a especialista.

Em entrevista à Revista SOGESP, Maria de Lourdes explica como entender o impacto das diferentes culturas na medicina e relata algumas de suas experiências. Veja a entrevista a seguir:

Como as diferentes culturas afetam o exercício da ginecologia?

A ginecologia é uma divisão ocidental das fragmentações das disciplinas. Ou seja, a medicina ocidental necessitou se fragmentar em diversas áreas para poder dominar a complexidade do corpo humano. No entanto, isso deveria ser um meio e não um fim em si próprio. A fragmentação do saber médico trouxe, por um lado, um saber especializado, que permite a evolução da área. Mas, por outro ponto, perdeu a questão humanista em que foi fundada a medicina.

A ginecologia passa por isso. Não podemos esquecer, por exemplo, que em toda cultura o nascimento tem um valor fundante. Representa a continuidade de uma família, comunidade, etnia, etc.. Tem valor extremo, no qual a mulher tem um papel fundamental para a continuidade da humanidade. Esse saber não está contemplado no saber especializado e, muitas vezes, a banalização do parto por parte do especialista pode vir a acontecer.

Estamos desenvolvendo uma pesquisa interessante na Associação dos Jovens Indígenas de Dourados, e a situação poderia ser bem melhor se houvesse o mesmo valor que damos à medicina tradicional. Muitas vezes os médicos não têm consciência da vulnerabilidade que as mulheres chegam nos consultórios e acabam falando com uma linguagem de especialistas. Como consequência, a paciente não tem coragem de perguntar sobre o que não entendeu. E ainda pode haver uma falta de conhecimento biológico sobre o próprio corpo da mulher atendida, o que dificulta a troca.

De que forma essas restrições podem impactar nos resultados da saúde da mulher?

Seguindo o exemplo dos povos indígenas, pois convivo e trabalho com eles há mais de 22 anos, o programa de Saúde da Mulher ditado pelo SUS é extremamente biomédico, considerando as consultas pré-natal, o parto em hospital etc.. E segue o mesmo roteiro para as gestantes indígenas, como aplicar este protocolo quando se está no Vale do Javari, fronteira com Peru e Colômbia, por exemplo.

Lá, a maioria da população é indígena, com diferentes etnias e concepções de corpo. Não é muito fácil, tampouco o ideal, convencer uma jovem indígena a percorrer este itinerário. Ela até pode começar por curiosidade, mas quando sente que não há empatia com sua concepção de corpo e de ser mãe, opta por abandonar.

É importante compreender que, nessas culturas que fogem do padrão hebraico-cristão, os médicos nem sempre são os primeiros a serem contatados quando há uma situação de mal-estar/doença dentro do núcleo familiar ou comunidade. Eles, em muitos casos, são os últimos a serem procurados. Primeiramente há uma consulta dentro da família, depois por algum agente espiritual (benzedeira, padre, pai de santo, pajé, etc.), seguida do farmacêutico e, só então, o médico.

Não necessariamente tem de ser nessa ordem, e nem com todos esses agentes da cura, mas o itinerário geralmente possui mais agentes não biomédicos. O profissional tem de estar consciente disso, pois influencia muito na não adesão ao tratamento. Geralmente, o abandono é causado pela falta de identificação do paciente para com o profissional da saúde.

Como personalizar o atendimento de acordo com a cultura da paciente?

É essencial entender de onde o sujeito vem e qual sua concepção de corpo. E isso é muito difícil. Ainda mais pelo fato de que os cursos médicos, atualmente, não costumam colocar na grade aulas que incentivem uma visão mais universal das concepções de corpo.

A especialização acabou deixando de lado a questão mais subjetiva do processo de sofrimento que cada um carrega. Não somente o indivíduo fica doente, mas carrega toda sua família e os coloca na suspensão da ordem cotidiana. Todos estão sofrendo e o médico precisa levar em conta o todo.

Quando formado com foco apenas na especialização, não se pensa no sofrimento da família/comunidade em que vive o sujeito que carrega a doença. Isso é um desperdício, pois o saber médico tem uma eficácia importantíssima, sabemos disso, mas não é o suficiente para tratar a subjetividade da doença/mal-estar.

 

Próximos eventos